Histórias não contadas: Carolina Maria de Jesus

Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Departamento de História

Ensino de História: Teoria e Prática - Profª Antonia Terra - Noturno

Nome: Nathalia Cecília Pessoa Caires Nº USP: 10371900

Sequência Didática - Histórias não contadas: Carolina Maria de Jesus

Introdução

Este projeto de sequência didática é destinado a professores do Ensino Fundamental II e Ensino Médio, tendo como tema Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977), moradora da extinta favela do Canindé na zona norte de São Paulo às margens do Rio Tietê - principal cenário de seus relatos - e seu o famoso livro-diário Quarto de Despejo – Diário de uma favelada (1960).
Como exposto por Audálio Dantas - repórter da extinta Folha da Noite que descobriu Carolina Maria de Jesus e seus escritos nos anos 50 - no prefácio da obra, nenhum escritor poderia escrever a história da favela como Carolina, com o olhar de dentro. Além disso, aponta como a obra não se trata somente de um livro em que é possível visualizar o passado da cidade de São Paulo mas também o presente, os dias atuais na qual, mesmo que a favela descrita por Carolina esteja extinta, essa se multiplicou em outras centenas de “Quartos de Despejo”.
Pelo nome da obra na qual será centralizada a sequência didática “Quarto de Despejo”, retirado da entrada de 19 de maio de 1958, em que Carolina descreve a sensação de marginalização e invisibilidade daqueles que vivem nas periferias de São Paulo, sendo mais do que o retrato de uma favela mas uma a denúncia das condições de vida de uma comunidade marginalizada. Assim, se ressalta a importância de Carolina e de seus escritos, à época e até os dias atuais, para aqueles que desejam ensinar mais sobre sua figura e escritos transpassando movimentos e ambientes academicistas principalmente no que diz respeito ao ensino de história e a análises realizadas acerca da desigualdade social e racial.

Objetivo

- Ressaltar a importância da escrita decolonial para compreensão da história como ela realmente ocorre contrapondo a prosperidade que a história oficial mostra referente a este período brasileiro.
- Evidenciar e debater a insuficiência do Estado, a desumanização dos favelados e o racismo.
- Permitir que os estudantes realizem reflexões acerca das causas da desigualdade racial e social no Brasil
- Estímulo à escrita e evidenciá-lo como material de apoio aos oprimidos e suas diferentes formas de resistência à dominação trazendo outras escritoras e personagens negras(os) periféricos à tona.

Conteúdo

Materiais Necessários

Video de apresentação “Quem foi Carolina Maria de Jesus” do Canal Curta! (https://www.youtube.com/watch?v=6P_q9O3VtIU”)
Video “Carolina Maria de Jesus” do Canal Futura
(https://www.youtube.com/watch?v=LuoaEyy8f5s)
Livro-diário “ Quarto de despejo: diário de uma favelada” de Carolina Maria de Jesus aumento da população e favelas
Algo sobre o aumento da inflação (reportagem https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/1/12/brasil/31.html ou (https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2021/05/17/ate-o-feijao-nos-esqueceu-o-livro-de-1960
-que-poderia-ter-sido-escrito-nas-favelas-de-2021.ghtml)
Imagens ou vídeos que mostram a disparidade entre o centro da cidade e as favelas na década de 50 e nos dias atuais

Bibliografia Indicada

Livro-diário: Quarto de despejo: diário de uma favelada de Carolina Maria de Jesus
Livro: História concisa do Brasil de Boris Fausto.

Público

- 9º ano do Ensino Fundamental
- 1ª, 2ª e 3ª série do Ensino Médio

Tempo Estimado

- 3 a 4 aulas (50 minutos/ aula)

Desenvolvimento

Encontro 1: Apresentação da autora através de vídeos + questões sobre Carolina +

discussão sobre importância da autora

- Indicação de vídeos de apresentação:

Mulheres Foda #03: Carolina Maria de Jesus do canal Tempero Drag (13 min) Show de História: Carolina Maria de Jesus” do Canal Futura (13 min)

- Questões:

1. Quem foi Carolina Maria de Jesus?
2. Onde ela morava?
3. O que ela fazia?
4. A respeito de que época Carolina fala em seu diário?
5. Sobre o que ela escreve?

- Debate sobre a importância:

Levantar os pontos pelos quais os alunos acreditam que Carolina é uma personagem importante na história do país. Durante o debate e o que for exposto pelos alunos, evidenciar a quebra de paradigma de sua trajetória sendo uma mulher negra, periférica e mãe solo na década de 1950 e 1960 que utiliza a escrita como manifesto, vendendo mais de 10 mil exemplares na primeira tiragem de Quarto de Despejo e trazer esses pontos para discussão ressaltando a importância de suas obras nos dias atuais.

Encontro 2: Desigualdade Social e Racial - Análise de trechos de Quarto de Despejo + Reportagens + Imagens

Nessa atividade os alunos devem montar grupos de 4 a 5 pessoas para analisar o material disponibilizado, correlacionando os trechos com as imagens e reportagens para posteriormente compartilhar as informações com a turma e professor suscitando o debate em torno da desigualdade social e racial enfatizando a marginalização, descaso e apagamento das periferias.

Trecho 1:

[...] Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de
cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.

19 de maio de 1958. Quarto de despejo: Diário de uma favelada. Carolina Maria de

Jesus.

Imagem 1A

Vista do Centro de São Paulo: Avenida São João, década de 50. Wladimir G de Lima.

Vista do Centro de São Paulo: Avenida São João, década de 50. Wladimir G de Lima.

Imagem 1B

img2

Favela do Canindé – Acervo: Acervo Fotográfico do Museu da Cidade de São Paulo

A partir do trecho do diário que introduz o nome da obra e as imagens selecionadas é possível realizar uma análise comparativa do que Carolina quis expressar. Na primeira imagem podemos verificar o centro da cidade de São Paulo com excelentes condições urbanas, ruas limpas, calçadas e pessoas “bem vestidas” em dispare na favela do Canindé percebe-se a carência de saneamento básico, asfaltamento, postes de iluminação, entre outros.
Assim, suscitando a insuficiência do Estado em suprir e o abandono por parte do poder público podendo trazer esse debate para os dias atuais.

Trecho 2A

“E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual — a fome! ”. 13 de maio de 1958.
Em relação a escravidão é possível abrir o debate pontuando que os negros, após a emancipação, sem indenização, procuravam reerguer uma etnia que havia sido escravizada por séculos, esses grupos se acumularam nas margens das cidades, principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo formando o que conhecemos hoje como favelas. Evidenciando uma sociedade que mesmo após abolição ainda mantinha e mantém características escravocratas até os dias de hoje.

Trecho 2B

O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.”. 10 de maio de 1958.

A fome aludida como professora por Carolina, como forma de crítica aos políticos contemporâneos a ela, uma vez que os moradores da favela viviam com o descaso do poder público, marginalizados e esquecidos sem nenhum tipo de saneamento básico. Assim, para a autora somente um político que tivesse passado por condições semelhantes às suas e de seus vizinhos poderia intervir para melhorar a situação daqueles à margem da sociedade.

Trecho 2C e Reportagem “'Até o feijão nos esqueceu': o livro de 1960 que poderia ter sido escrito nas favelas de 2021” por BBC. (Anexo1)

“Antigamente era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes. Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo.”. 23 de maio de 1958.
Em relação ao encarecimento de insumos básicos, Carolina aponta o “abandono” do companheiro dos pobres, o feijão. Essa declaração se dá em 1958, a época o presidente Juscelino Kubschet, a inflação obteve um aumento de média de 23% ao ano, em um país que passava por uma modernização industrial resultando nesse processo inflacionário, aumentando a desigualdade social do país. Sendo possível, realizar uma análise comparativa junto a reportagem do G1, trazendo a questão da escassez de alimentos, aumento dos preços e a pobreza para os dias atuais.
Em todos os pontos acima citados existe a possibilidade de trazer as questões centrais para os dias atuais, o que torna possível uma aproximação da realidade dos alunos com os escritos de Carolina.

Encontro 3 e 4: Pesquisa e apresentação de personagens negro perifericos que utilzem a escrita e a arte como manifesto

Para os dois últimos encontro é proposto uma atividade de pesquisa sobre personagens negros perifericos que utilizem a escrita ou a arte como manifesto para apresentação na aula final. O intuito é fazer com que os alunos se aproximem mais da cultura negra periférica que acaba por ser apagada no currículo escolar.
A atividade é realizada em grupo de 4 a 5 pessoas com objetivo de aproximar os alunos dada a predileção dos personagens a serem apresentados. Na apresentação, os alunos devem focar em 5 pontos principais: quem é/são o personagem, de onde é/são o personagem, o que o personagem produz, sua trajetória e qual a importância desse(s) personagem para o
grupo.
Espera-se que com essa atividade os alunos possam trazer personagens periféricos por eles já conhecidos ou recém descobertos. Exemplo de personagens: Criolo, Emicida, Conceição Evaristo, Ferréz, Jarid Arraes, Karol Conka, Maria Firmina dos Reis, MC Carol, Racionais MCs, entre outros.

Considerações finais

Procurou-se com a sequência didática acima resgatar a memória de Carolina Maria de Jesus e utilizá-la como material para o ensino de história com ênfase na desigualdade social e racial contemporânea a obra na década de 1950 e 1960 e trazer essa discussão também para os dias atuais. Além disso, incentivar os alunos a conhecer e pesquisar sobre personagens negros perificios assim como Carolina e evidencia-los.

Referências bibliográficas

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10a. edição. São
Paulo: Ática, 1993.

Fonte das Imagens e Reportagem

Imagem 1A: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/CasaVerde_web_1392056667.pdf. Acesso em: 30/07/2021
Imagem 1B: https://clickmuseus.com.br/carolina-de-jesus-poetisa-negra-brasileira/. Acesso em: 30/07/2021
Reportagem:
https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2021/05/17/ate-o-feijao-nos-esqueceu-o-livro-de-1960- que-poderia-ter-sido-escrito-nas-favelas-de-2021.ghtml. Acesso em: 30/07/2021

Anexos

1. “'Até o feijão nos esqueceu': o livro de 1960 que poderia ter sido escrito nas favelas de 2021” por BBC. 17/05/2021.

Escassez de alimentos, inflação e pobreza descritas pela escritora negra Carolina de Jesus no best seller 'Quarto de Despejo' há quase 70 anos se assemelham à realidade dos mais pobres na pandemia

Filhos passando fome. Dificuldade para comprar itens básicos devido à alta de preços. A
coleta de sucata como única fonte de renda em meio ao desemprego.
A dura rotina de violências sociais vivida pela escritora negra Carolina Maria de Jesus na década de 1950 se assemelha à realidade que muitos brasileiros têm enfrentado em meio à pandemia do coronavírus.
"Como é horrível ver um filho comer e perguntar: 'Tem mais?' Esta pergunta 'tem mais' fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais", escreveu Carolina em seu livro de estreia.
"Quarto de despejo: diário de uma favelada" foi lançado em 1960 e retrata a vida da autora e de seus três filhos na favela do Canindé, em São Paulo, entre julho de 1955 e janeiro de 1960. A obra manteve a grafia original da autora, que estudou só até o segundo ano primário.
A experiência de ver os filhos com fome descrita por Carolina é vivida no Brasil de 2021 por Breda Souza Pimentel, de 26 anos e moradora de Petrolândia, às margens do rio São Francisco, em Pernambuco.
"Tenho quatro meninos e uma menina, o mais velho tem 8 anos e a mais nova, 5 meses. Eu vivo só com meus filhos", conta a pernambucana.
"Eu trabalhava de ajudante de cabeleireira, mas a moça que tinha o salão fechou, porque não estava mais tendo clientela. De lá para cá, eu vinha me sustentando com esse auxílio que tinha, mas agora eu não fui contemplada, fiquei só com meu valor do Bolsa Família, que é R$
189."
"Eu estou vivendo só com isso, mas às vezes as pessoas me ajudam com alimentos para os meus filhos. De vez em quando, eu acho algum bico para fazer, mas é muito raro. Tem dias que não tenho nem o leite da minha bebê."
"Minha situação, a cada dia que passa, piora mais, porque sem trabalho é complicado demais. E, com criança pequena, eu não tenho com quem deixar. Os meus maiorzinhos, quando não tem comida, eu converso com eles e eles entendem. Mas os pequenos não entendem."
"A gente tenta ter um ânimo, mas não consegue, porque o desemprego está muito grande em todo lugar. É só angústia e tristeza, quem é mãe entende", conclui Breda.

O Brasil da década de 1950

A volta do Brasil ao mapa da fome, o aumento da inflação e a expansão da pobreza são marcas tristes de um ano em que Carolina Maria de Jesus recebeu o título de doutora honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e que seu best seller "Quarto de despejo" ganhou edição especial comemorativa pela Editora Ática, após ser traduzida para 13 idiomas.
Mas é claro que o Brasil de hoje é muito diferente daquele da década de 1950.
Por exemplo, naquela época, éramos cerca de 52 milhões de brasileiros e hoje somos mais de
211 milhões. Pouco mais de 36% da população de então era urbana, comparado a 85% hoje. Metade da população de 15 anos ou mais era analfabeta, ante menos de 7% de analfabetos atualmente.
Um levantamento de 1957 contava 141 favelas em São Paulo, com pouco mais de 8 mil domicílios e cerca de 50 mil favelados. Em 2017, os domicílios em favelas na cidade eram mais de 390 mil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Entre 1955 e 1960, a inflação no país subiu a uma média de 23% ao ano, segundo o IGP-DI da Fundação Getúlio Vargas. A segunda metade da década de 1950 foi marcada pela modernização industrial do país, que resultou num processo inflacionário e no aumento da desigualdade, com uma maior produção de riqueza que não chegava para todos.
O processo de industrialização na década de 1950, que levou ao início da favelização nos grandes centros urbanos, trouxe consigo um fenômeno novo: a fome urbana. O jornal Folha da Manhã, que viria depois a se tornar a Folha de S. Paulo, em uma reportagem de 1952, descrevia as recém surgidas favelas como "um ambiente de miséria, desconforto e fome".
"A fome age não apenas sobre os corpos das vítimas", escreveu Josué de Castro, autor do primeiro mapa da fome do Brasil, que deu origem ao livro Geografia da Fome, de 1946. "Consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome."

O Brasil de 2021

Apesar das diferenças, há pontos em comuns entre os dois momentos da história.
Estudo publicado em abril pela Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, revelou que
59% dos domicílios brasileiros passaram por situação de insegurança alimentar durante a pandemia.
A insegurança alimentar abrange desde a alimentação de má qualidade, passando pela instabilidade no acesso a alimentos, até a fome.
Do total de 72 milhões de lares brasileiros, 15% enfrentavam insegurança alimentar grave, que acontece quando há redução da quantidade de alimentos disponíveis para as crianças. Considerando a média de 2,9 moradores por domicílio no país, são pelo menos 31,3 milhões de brasileiros vivendo em lares onde há crianças passando fome. E esse número é apenas uma aproximação, já que os domicílios de baixa renda costumam ter mais moradores que a média. A inflação acumulou alta de 6,1% em 12 meses até março. Mas os alimentos, que representam a maior parcela do consumo dos mais pobres, subiram mais que o dobro disso:
13,87%, conforme o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), índice oficial de inflação do país.
Alguns itens básicos registram aumentos de preço exorbitantes no período recente, caso do óleo de soja (com 82% de alta em 12 meses até março), arroz (64%), feijão preto (51%), carnes (31%), batata (25%), leite (16%) e gás de botijão (20%).
A taxa de desemprego chegou a 14,4% em fevereiro, somando 14,4 milhões de desocupados, segundo o IBGE.
Esse percentual vai a 29,2% da população em idade de trabalhar ou 32,6 milhões de pessoas, considerando também aqueles que estão trabalhando menos do que gostariam, que desistiram de procurar emprego ou que gostariam de trabalhar, mas por algum motivo (como ter que cuidar dos filhos que estão fora da escola ou de idosos, por exemplo) não estavam disponíveis. São os chamados subutilizados.
Como na década de 1950 em que escrevia Carolina Maria de Jesus, todos esses problemas são mais graves paras as mulheres negras.

Direitos básicos negados

"É como se o 'Quarto de Despejo' estivesse sendo reescrito novamente agora, nessas experiências que a gente tinha a esperança que mudassem ao longo desses 60 anos", diz Eliane da Conceição Silva, socióloga que estudou a violência social brasileira na obra de Carolina Maria de Jesus em seu doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Segundo a pesquisadora, a chamada violência social é resultado de um conjunto de desigualdades existentes na nossa sociedade.

"É essa estrutura desigual que resulta em que uma parcela significativa da população sofra com situações de privação, de violência física e inclusive de morte, exatamente por terem seus direitos mais básicos negados", afirma Silva.

Na obra de Carolina, a fome, por exemplo, é tão presente que é como uma personagem, chamada pela autora de "a amarela", uma referência à cor da bile dos estômagos vazios.

"No caso da inflação, o que ela sente é o pouco dinheiro que ela consegue cada vez comprando menos coisas", observa.

Segundo a socióloga, Carolina faz uma reflexão sobre como a democracia se enfraquece à medida em que as pessoas não têm condições de se alimentar e tem uma consciência de que isso tem relação direta com quem está no poder.

"Ela chega a criticar em alguns momentos que os políticos, quando querem se eleger, falam do custo de vida, que vão diminuir os preços, sabendo que, com isso, vão conseguir tocar o coração dos mais pobres", destaca a pesquisadora.

"Mas, depois de eleitos, 'nos olham com olhos semicerrados e esquecem as promessas que foram feitas.'"

A inflação na década de 1950 e em 2021

"Antigamente era a macarronada o prato mais caro. Agora é o arroz e feijão que suplanta a macarronada. São os novos ricos. Passou para o lado dos fidalgos. Até vocês, feijão e arroz, nos abandona! Vocês que eram os amigos dos marginais, dos favelados, dos indigentes.

Vejam só. Até o feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de despejo", escreve Carolina, em 23 de maio de 1958.

Irislania Emiliana Viana, de 31 anos, vive com seus nove filhos e o marido em Valparaíso de Goiás, numa casa com apenas dois cômodos. Seu bebê tem 10 meses e a filha mais velha, 16 anos. Ela e o companheiro estão desempregados.

"Meu marido é pedreiro, mas já tem mais ou menos uns sete, oito meses que ele não consegue trabalho" conta Irislania. "Eu sempre fiquei em casa, mas fazia uma coisinha aqui, uma coisinha ali para vender, para fazer um dinheiro a mais. Com a pandemia, eu não pude mais trabalhar por causa das crianças, está perigoso para mim e para elas".

Segundo ela, a família atualmente tem que escolher entre comer ou comprar o gás de botijão, que em muitas cidades do Brasil já ultrapassa os R$ 100 neste mês de maio.

"Estou cozinhando à lenha. A gente está sem condições de comprar gás. Quando a gente faz um dinheirinho — às vezes meu marido faz um biquinho aqui, um biquinho ali — no preço que que está o gás, ou a gente compra o gás, ou compra alimento", relata.

Irislania sente no dia a dia a redução do auxílio emergencial distribuído pelo governo federal, mas ainda assim se diz grata pela ajuda.

"Recebi o auxílio ano passado. Neste ano, veio R$ 150. É pouco, mas eu não vou reclamar não, porque pelo menos a gente consegue comer, fazer umas comprinhas."

'O Quarto de Despejo ainda é uma realidade'

"O Quarto de Despejo, apesar de ter sido publicado há 60 anos, ainda é uma realidade", avalia Vera Eunice de Jesus, professora da rede pública de São Paulo e filha de Carolina.

"Sou professora de educação infantil e tenho percebido como as crianças chegam à escola", conta a educadora, que dá aulas na Vila São José, no extremo Sul da capital paulista.

Vera Eunice de Jesus, professora da rede pública de São Paulo e filha de Carolina: "O Quarto de Despejo, apesar de ter sido publicado há 60 anos, ainda é uma realidade" — Foto: TV Brasil via BBC

Ela relata, por exemplo, que tem um aluno de 5 anos que bate na professora e nos colegas e, quando é questionado por que, grita que está com fome.

"Depois que ele come, é outra criança. A gente sabe que ele almoça na escola e vai tomar café só no outro dia na escola. As únicas refeições que ele faz são ali."

Na pandemia, Vera Eunice e as outras professoras têm ajudado a organizar a distribuição de cestas básicas para as famílias mais carentes da comunidade.

"A gente marca 9h da manhã para a retirada das cestas. Quando dá 6h, já tem fila. Eu falo para eles: 'Ainda é cedo.' E eles dizem: 'Não se incomode não, a gente está bem aqui.'"

"A minha mãe era assim. Quando ela sabia que iam dar uma cesta, um arroz, um brinquedo, ela ia atrás. Nessas mesmas condições que eu vejo o povo hoje, no século 21."

Distante da Zona Sul, no Jardim Keralux, bairro do extremo Leste de São Paulo, às margens do rio Tietê, assim como a antiga favela do Canindé, onde viveu Carolina, a realidade é semelhante.

"Com a pandemia, piorou muito a situação por aqui. Do início desse ano para cá, vemos que os poucos que tinham renda acabaram ficando sem", afirma Edinilson Bastos, diretor do Instituto União Keralux, uma organização de assistência local.

Ele conta que, no ano passado, a entidade contou com a ajuda de uma empresa para distribuir

950 cestas básicas por mês. Neste ano, mesmo com o aumento da procura dos moradores por alimentos, a parceria não se repetiu.

"Infelizmente, a situação se agravou para todos e as empresas que no ano passado ajudaram, neste ano também sofreram as consequências da crise. Então, estamos vivendo de algumas doações esporádicas, que não estão suprindo a demanda", lamenta.

Sucata como fonte de renda

Assim como Carolina fez na década de 1950, quem está sem renda atualmente também se vira como pode para garantir o sustento próprio e dar de comer aos filhos.

"Minha mãe sempre trabalhou muito e era muito focada em que nós estudássemos", conta Vera Eunice, atualmente com 67 anos. "Eu saía com ela para catar papel, sempre saí, minha mãe nunca me deixava."

Em 27 de maio de 1958, Carolina Maria de Jesus escreveu em seu diário: "Comecei a sentir a boca amarga. Pensei: já não basta as amarguras da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel."

"Ia catando tudo que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recebi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estômago reclamava e torturava-me", registrou naquela data a escritora.

Em 23 de abril de 2021, Jessica Fernanda Santana, de 30 anos e moradora de Itapira, no interior de São Paulo, conta: "Meu marido trabalhava como lenheiro, cortando eucalipto, mas a serraria fechou com a pandemia. Agora estamos coletando sucata."

"Tenho um menino de 8 anos e faz uns quatro meses que eu estou fazendo esse serviço. Nesses quatro meses, juntamos um dinheirinho e compramos uma caminhonete parcelada. Agora, eu tenho a caminhonete para catar e boto no Facebook pedindo para as pessoas me ajudarem, porque na rua não se acha, que aqui tem muito catador."

"Cato papelão, alumínio, ferro, latinha, janela, de tudo um pouco. Conseguimos tirar uns R$

1 mil por mês, mas é bem menos do que meu marido fazia como lenheiro. Então, o pessoal ajuda com mantimento. Às vezes, até posto no Facebook pedindo alimento também, porque eu moro de aluguel, aí tem água, luz, tem a caminhonete para pagar. Se for depender só da sucata, não dá conta. Então, eu peço ajuda pro povo."

"Ano passado, eu recebi o auxílio, neste ano, não recebi ainda. Nem sei se vou receber, porque diz que não é todo mundo que está incluído. Se vier, vai ajudar um pouco, que é um dinheirinho a mais, que a gente não esperava. Mas, de R$ 600 para R$ 250, é muita diferença."

Poucos dias depois de contar sua história por telefone à BBC News Brasil, Jessica descobriu uma doença grave e precisou deixar a coleta de sucata, única fonte de renda da família, enquanto o auxílio emergencial não vem.

'Hoje são milhares de Carolinas'

Para a socióloga Eliane da Conceição Silva, a repetição em 2021 de experiências vividas por Carolina Maria de Jesus da década de 1950 revela o quanto o Brasil progrediu pouco enquanto sociedade e o quanto pouco mudaram as estruturas sociais que fazem com que mulheres e negros sejam os que mais sofram em situações de crise.

"O que efetivamente mudou é que essas pessoas que estão sofrendo com essa situação estão cada vez mais tendo formas de dizer o que estão passando", avalia a pesquisadora.

"Aquele silêncio, que a Carolina foi a primeira a romper, hoje já está sendo mais questionado. Vemos denúncias não só de quem está de fora, mas de dentro, através das redes sociais e de outras formas de divulgação e de produção cultural."

Vera Eunice, a filha de Carolina, tem avaliação similar. "Vejo que hoje as comunidades têm mais Carolinas. Muitas mulheres que são mães solteiras, que trabalham, que cuidam dos seus filhos. Muitas que escrevem, muitas que estudam. Acho que esse hoje é o diferencial."

Referencia
Graduandos
Anexo Tamanho
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