Uma Cidade em Transformação Permanente:   As Contradições da São Paulo Industrial no Cinema e na Literatura

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

 

ESSI RAFAEL MONGENOT LEAL N°USP 9775384

 

 

Uma Cidade em Transformação Permanente: 

As Contradições da São Paulo Industrial no Cinema e na Literatura

 

 

 

São Paulo 

2019

 

 

UMA CIDADE EM TRANSFORMAÇÃO PERMANENTE: AS CONTRADIÇÕES DA SÃO PAULO INDUSTRIAL NO CINEMA E NA LITERATURA

 

 

Introdução

 

 

 

Ao trabalhar na elaboração de uma aula para jovens do Ensino Médio sobre a História de São Paulo, propomos o uso de uma série de textos e imagens, provenientes da academia, da literatura e do cinema paulistano, para caracterizar duas problemáticas principais: a constante transformação da cidade de São Paulo, um organismo vivo que não cessa de se modificar (I); e a multiplicidade de vivências possíveis dentro de um território urbano articulado de maneira desigual (II).

Para trabalhar o primeiro tema, teremos como base o texto de Raquel Glezer, “Visões de São Paulo”, como forma de instigar os alunos a pensarem em como a configuração atual da cidade é fruto de uma história muito recente, na qual os vislumbres de séculos passados foram praticamente obliterados da paisagem urbana, por meio de um processo de construção destrutiva, desmistificando o conceito de “palimpsesto” proposto por Benedito Lima.

no que concerne a coexistência de distintas realidades sociais dentro da mesma cidade, propomos um diálogo entre duas obras produzidas no início dos anos  60. Por um lado, o filme São Paulo S.A. (1965), dirigido por Luiz Sérgio Person, retrata a cidade utilizando o ponto de vista de um jovem de 25 anos que faz parte da classe média paulistana, inserido no boom da indústria automobilística. Por outro, o livro Quarto de Despejo - Diário de uma favelada (1960), traz as impressões de Carolina Maria de Jesus, mãe solteira com três filhos, sobre seu cotidiano na favela do Canindé.

Desse modo, espera-se transmitir aos alunos dois pontos de vistas distintos de um mesmo espaço-tempo histórico, a São Paulo industrial dos anos 50 e 60, demonstrando a importância de um olhar crítico sobre um período vislumbrado por correntes historiográficas economicistas como um momento de “desenvolvimento” da cidade e do país, num contexto de grande crescimento populacional, oriundo sobretudo de levas de migração interna provenientes do Nordeste e das demais regiões do Brasil.

 

O uso do cinema e da literatura, em conjunto com trechos de textos acadêmicos, tem por objetivo trazer aos alunos uma impressão mais vívida do passado recente da cidade de São Paulo. Filmes e livros, dentre outros meios de expressão artística, tem o poder de atrair a empatia dos jovens, uma vez que utilizam, frequentemente, uma linguagem poética, crua ou direta, favorecendo a transmissão de ideias que, de outro modo, tornariam-se conceitos abstratos na mente dos alunos.

 

 

Sequência Didática

 

 

 

O início da aula se dará por meio de uma indagação aos alunos, formulada a partir do texto “Visões de São Paulo”, de Raquel Glezer: De que cidade e tempo histórico se trata o trecho a seguir?

 

 

“... cidade medíocre, vistosamente assentada em terreno pouco levantado [...], várias praçås, três magníficas pontes de pedra com outras de madeira, e diversas fontes… Muitas ruas são bem calçadas, os edifícios quase geralmente de taipa, isto é de terra, como greda acalcada entre duas pranchas, e branqueadas como tabatinga”.

 

Padre Manuel Aires do Casal,

 

Corografia brasílica ou Relação histórico-geográfica do Reino do Brasil, p. 110

 

 

 

Se a sala permanecer em silêncio, o professor pode ajudar a contextualizar o trecho, explicando que as fontes facilitavam o acesso à água na cidade, evitando que seus moradores, sobretudo a população escrava, responsável pelos trabalhos manuais, tivessem que se deslocar até a margem dos rios e ribeirões que ladeavam o núcleo urbano. O professor pode esclarecer que greda é sinônimo de barro trabalhado para a construção, enquanto tabatinga é uma espécie de argila branca ou   esbranquiçada.   Às   impressões   dos   alunos,   o   professor   pode   replicar perguntando qual foi a lógica que os guiou a inferir suas respostas, estimulando a expressão de suas reflexões.

Fig. 1 Aquarela do Chafariz da Misericórdia, desenhada pelo artista Miguel Benício Dutra (sem data)

 

Fig. 1 Aquarela do Chafariz da Misericórdia, desenhada pelo artista Miguel Benício Dutra (sem data)

 

 

 

É provável que os alunos digam São Paulo logo de cara, uma vez que é a região-tema da aula. Contudo, a indagação sobre o período histórico ajudará os alunos a refletirem sobre as transformações da cidade, uma vez que a São Paulo descrita por Aires do Casal, memorialista do início do século XIX, não existe mais. As fontes de água foram destruídas, tornadas inúteis pelo sistema de encanamento privado com fornecimento direto de água às habitações, assim como as casas de taipa do centro da cidade foram substituídas por outras de alvenaria, posteriormente dando lugar a edifícios espelhados de dezenas de andares.

Fig. 2 - Foto da cidade de São Paulo em meados do séc XIX, a partir do Largo do Piques  (Militão de Azevedo, 1862)

Fig. 2 - Foto da cidade de São Paulo em meados do séc XIX, a partir do Largo do Piques

 

(Militão de Azevedo, 1862)

 

 

 

Utilizando-se de outro trecho do texto de Raquel, o professor ou professora explicará então que o crescimento da cidade de São Paulo é fato histórico bastante recente:

 

 

“Durante a maior parte de sua existência, ela (a cidade de São Paulo) foi um pequeno povoado. Embora obtivesse o título de vila em 1560 e o de cidade em

1711, sua população foi escassa, comparada com outras cidades brasileiras, em

 

1766 - cerca de 5.000 habitantes; em 1794, 9.500; em 1836, 22.000; em 1872,

 

31.000; em 1886, 48.000; em 1890, 65.000. Somente no final do século XIX

 

houve o salto e de 192.000 habitantes em 1893, a cidade passou a 240.000 em

 

1900.”

 

 

 

Dessa maneira, o professor deve salientar que o crescimento vertiginoso da cidade de São Paulo data de finais do século XIX, processo que se intensificou no decorrer do século XX, quando a cidade tornou-se o centro econômico do país e a maior metrópole da América do Sul, história repleta de avanços tecnológicos e contradições  sociais.    Ademais,  o  professor  deve  explicitar  a  tese  de  Glezer,

 

argumentando  que,  em  sua  trajetória  de  expansão  voraz,  São Paulo teve seu passado histórico apagado de sua materialidade urbana.

Contrariando ideia desenvolvida por Benedito de Lima, que usa o conceito de palimpsesto, pergaminho no qual um texto é apagado para dar lugar a outro, como metáfora da cidade, Glezer afirma:

 

 

“Diversamente de tantas outras cidades que conseguiram em seus longos percursos de vida manter áreas de preservação, mesmo limitadas, São Paulo destruiu o referencial material e alterou o plano físico tão brutalmente, que falar de palimpsesto”, como o fez Benedito Lima de Toledo resulta inócuo, pois o pré-existente transformou-se em inexistente”.

 

 

Como um organismo vivo, a cidade de São Paulo jamais cessou seu movimento de transformação e destruição, processo que, deve ser destacado aos alunos, continua nos dias de hoje. A grosso modo, foram diversas as encarnações de São Paulo desde sua fundação: a cidade de barro, a cidade dos acadêmicos, a cidade dos fazendeiros, a cidade dos imigrantes, a cidade industrial, e, mais recentemente, a cidade pós-industrial.

O professor abordará então a São Paulo industrial, com ênfase nas décadas de 50 e 60 do século XX, para ilustrar os contrastes e desigualdades que emergem durante o processo de transformação urbana. Ao contrário do que livros didáticos pouco aprofundados possam sugerir, um mesmo momento histórico não é vivido de maneira uniforme por segmentos populacionais distintos. Dessa forma, é importante lançar um olhar crítico sobre a São Paulo “desenvolvimentista”, a cidade retratada como o motor industrial e pivô do crescimento econômico do Brasil. Tal abordagem será feita mediante o contraste de trechos do filme São Paulo S.A. (1965) com excertos do livro Quarto de Despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus.


Fig. 3 - Abertura de São Paulo S.A., com foco nos arranha-céus da cidade, símbolos do crescimento vertiginoso da cidade

Fig. 3 - Abertura de São Paulo S.A., com foco nos arranha-céus da cidade, símbolos do crescimento vertiginoso da cidade

 

 

São Paulo S.A. é um filme de ficção que transcorre entre os anos de 1957 e

 

1961, retratando os dilemas de Carlos, um jovem de classe média de 25 anos, desenhista industrial, que busca ganhar a vida no setor automobilístico em pleno crescimento na metrópole paulistana. A produção, dirigida por Luiz Sérgio Person, foi lançada em meio a uma tendência do cinema de sair dos estúdios e ganhar as ruas, uma vez que o filme faz parte da tendência na qual as produções cinematográficas buscavam um maior grau de “realidade” em suas narrativas, frequentemente denunciando mazelas sociais.

Fig. 4 - Fusca circulando no Vale do Anhangabaú, em trecho que hoje é fechado à circulação de carros

Fig. 4 - Fusca circulando no Vale do Anhangabaú, em trecho que hoje é fechado à circulação de carros

Inicialmente, o professor deverá exibir dois pequenos trechos do filme, que somam cerca de 5 minutos de duração. O trecho 1 está localizado no ponto situado entre 9min21s a 11min20s do enredo, enquanto o trecho 2 ocorre entre 1h02min38 e 1h05min05s. Se o professor souber mexer num programa de edição simples, pode montar um clipe com os trechos em sequência. Caso não saiba, pode simplesmente levar uma cópia do filme, em arquivo digital ou DVD, e selecionar os pontos acima mencionados.

 

Fig. 5 - Fábrica da Volkswagen, onde trabalha Carlos, interpretado pelo ator Walmor Chagas

Fig. 5 - Fábrica da Volkswagen, onde trabalha Carlos, interpretado pelo ator Walmor Chagas

 

 

 

O trecho 1 é narrado em primeira pessoa. Carlos, protagonista do filme, conta a respeito de sua inserção na indústria automobilística. Simultaneamente, as imagens mostram seu local de trabalho a pleno vapor:

 

 

“O dinheiro ganho não dava pra aguentar o repuxo. Saí do escritório quando começaram a surgir novas oportunidades na indústria automobilística. Bastava abrir o jornal e escolher. Precisa-se de jovens competentes para a indústria de automóveis. Com o diploma de desenhista industrial, arranjei logo um emprego na Volkswagen. Trabalho puxado, mas de maior compensação. Entrei no controle de qualidade: inspetor de produção.


Fig. 5 - Fábrica da Volkswagen, onde trabalha Carlos, interpretado pelo ator Walmor Chagas    O trecho 1 é narrado em primeira pessoa. Carlos, protagonista do filme, conta a respeito de sua inserção na indústria automobilística. Simultaneamente, as imagens mostram seu local de trabalho a pleno vapor:   “O dinheiro ganho não dava pra aguentar o repuxo. Saí do escritório quando começaram a surgir novas oportunidades na indústria automobilística. Bastava abrir o jornal e escolher. Precisa-se de jovens competentes para a indústria de automóveis. Com o diploma de desenhista industrial, arranjei logo um emprego na Volkswagen. Trabalho puxado, mas de maior compensação. Entrei no controle de qualidade: inspetor de produção.

Fig. 5 - Carlos trabalhando como inspetor industrial

 

 

(Cont.)… Arturo também era filho do milagre da indústria automobilística brasileira.  Um  barracão,  algumas  máquinas  velhas,  poucos  operários  e pretendia vender eixos e engrenagens para a Volkswagen. E vendia. Seu barracão deu um salto. Virou logo uma das 2 mil fábricas de autopeças que cresceram em São Paulo da noite pro dia. Diante do meu chefe, Arturo e eu parecíamos dois estranhos. Eu fingi até que se pudesse contar com produtos melhores, de modo algum deixaria a Volks engolir as engrenagens do Arturo. Mas não tínhamos outro jeito. O programa de nacionalização dos veículos precisava ser acelerado. Arturo era insistente e tinha meios para convencer. Suas peças eram aceitas e todo mundo ficava contente”.

Fig. 4 - Fusca circulando no Vale do Anhangabaú, em trecho que hoje é fechado à circulação de carros

 

Fig 6 - Arturo (à direita), imigrante italiano, vira fabricante de autopeças na São Paulo industrial

 

 

No trecho 2, Arturo e Carlos já são sócios em um negócio próprio no ramo de autopeças. O professor pode fazer essa contextualização antes de exibir a cena, para que os alunos possam melhor apreciá-la. Trata-se de um diálogo entre Arturo e Carlos, que estão de carro numa rodovia ladeada por empresas automotivas:

 

 

 E no final das contas, o que é o café? certo que ele ainda pesa na balança, sem ele o Brasil já estaria perdido, mas o café é o presente. O futuro tá aqui, Carlos. É a indústria que vai decidir, é o aço, o petróleo, nossas máquinas, nossos automóveis, nossos tratores. E quem é que diz a última palavra no assunto? Quem é que comanda? Quem é que puxa tudo isso para frente, me diga? É São Paulo, meu velho. É São Paulo! Essa terra de gente que trabalha. Somos nós que impulsionamos o Brasil. Somos nós o motor. São Paulo cresce, e não parará de crescer. Você se lembra alguns anos atrás? Quem pensava que o Brasil podia fabricar automóveis? Quem acreditava que de um dia para o outro surgiria tudo isso que você na sua frente? Duas mil indústrias de autopeças como a nossa. Mais de 200 mil veículos por ano. Assim, de uma hora para

outra. Já pensou?

Fig. 7 - No decorrer do enredo, Carlos e Arturo viram sócios na indústria de autopeças

 

Fig. 7 - No decorrer do enredo, Carlos e Arturo viram sócios na indústria de autopeças

 

A cena termina com Arturo fazendo uma surpresa para Carlos, mostrando a nova sede da companhia Autopeças Carracci S.A., em início de processo de construção.

Fig. 8 - A nova sede da Auto-Peças Carracci S.A., em construção

Fig. 8 - A nova sede da Auto-Peças Carracci S.A., em construção

 

 

Então, Carlos, conhecendo a conduta por vezes ilícita do colega, indaga:

 

 

 

Arturo, aonde que você arranjou dinheiro pra tudo isso?

 

 Mas que dinheiro? Crédito, meu velho! Crédito! 3.500 metros quadrados, entre os grandes, os maiorais da indústria, a dois passos da Volkswagen, da Wyllis, da Mercedes. É tudo aqui perto de nós. Não é formidável?

Admitindo que você possa pagar o terreno, que é um bom negócio.... como é que você vai construir?

Do mesmo modo que comprei o terreno, meu velho. Se que depois de tanto tempo que está comigo (você) ainda não aprendeu muita coisa em matéria de negócio. Pra que serve o Banco do Brasil e as boas amizades?

 

 

Após a exibição dos dois trechos, o professor pode lançar uma pergunta para a sala: Por que os alunos acham que o filme se chama São Paulo, sociedade anônima (S.A)? É importante que os alunos sejam estimulados a falar livremente, não há resposta certa ou errada. Algumas das possibilidades que podem ser aventadas são que o título se relaciona com o dinamismo econômico da cidade de São Paulo, repleta de novas empresas no período retratado, ou que o nome escolhido reflete uma certa despersonalização da vida na metrópole paulistana, onde a busca pelo sucesso a qualquer custo acarreta perda de elementos humanos fundamentais na psique de seus habitantes.

 

É importante o professor notar que se trata de um filme crítico ao estilo de vida da elite econômica da São Paulo industrial. O enredo destaca a amoralidade de Arturo e o egoísmo de Carlos, que não medem esforços para atingirem seus objetivos pessoais e profissionais. Caso o professor queira acrescentar mais uma informação importante, pode revelar aos alunos que o filme tem um viés autobiográfico, uma vez que o cineasta Luiz Sérgio Person, quando jovem, assumiu os negócios da família por cerca de dois anos. Frustrado com a falta de significado de sua atividade empresarial, ele abandonou tudo, optando por entrar no mundo das artes.

 

Em seguida, para fazer um contraste com o universo cheio de riquezas materiais de Arturo e Carlos, o professor ou professora apresentará aos alunos o diário de Carolina de Jesus, que retrata o cotidiano da favela do Canindé, hoje extinta, localizada às margens do rio Tietê, na zona Norte de São. Os fatos narrados no diário se desenrolam entre 1955 a 1960. É o mesmo tempo histórico de São Paulo S.A., entretanto, trata-se de uma realidade social completamente distinta. Carolina de Jesus, mesmo tendo tido uma educação formal de menos de 2 anos, era uma mulher apaixonada pela leitura e pela escrita. Ao longo do tempo, adquiriu o hábito de escrever sobre os acontecimentos de sua vida cotidiana em cadernos, registrando as cruezas de sua rotina, sobretudo o desafio diário de obter comida para seus três filhos.

 

Fig. 9 - Carolina Maria de Jesus na extinta Favela do Canindé (Foto publicada na Revista O Cruzeiro, 1959)

Fig. 9 - Carolina Maria de Jesus na extinta Favela do Canindé (Foto publicada na Revista O Cruzeiro, 1959)

 

Após contextualizar a história de Carolina de Jesus e seu diário, o professor
projetará então dois excertos de Quarto de Despejo , que podem ser passados via
slides ou por meio de impressão em papel, com distribuição dos textos impressos
para os alunos.

Fig. 11 - Excerto 2, Quarto de Despejo, 14/06/1958, p. 55

 

Fig. 12 - Carolina de Jesus e sua filha Vera Eunice catando papel (Foto publicada na Revista O Cruzeiro, 1959)

Fig. 12 - Carolina de Jesus e sua filha Vera Eunice catando papel (Foto publicada na Revista O Cruzeiro, 1959)

 

Após a leitura dos excertos, o professor pode fazer uma indagação aos alunos: É possível que Carlos e Carolina habitem a mesma cidade de São Paulo? As discussões serão feitas a partir dos comentários dos alunos, que podem se enveredar por questões sociais, econômicas, culturais, perpassando até mesmo problemáticas raciais, uma vez que o universo habitado por Carlos é repleto de pessoas brancas e imigrantes europeus, enquanto no universo de Carolina predominam negros e migrantes nordestinos. O professor deve estar pronto para estimular o debate sobre quaisquer dos assuntos suscitados, inclusive com associações ao presente, enfatizando que a produção de riqueza com frequência é concomitante à produção de pobreza.

Em seguida, o professor mostrará que de fato ambos habitam a mesma São Paulo. Com a leitura de mais dois excertos de Quarto de Despejo e a exibição de outros dois trechos de São Paulo S.A., os alunos poderão entender de que forma os mundos de Carlos e Carolina poderiam se chocar.

No excerto 3 de Quarto de Despejo, um dos filhos de Carolina, José Carlos, interage  com  as  instalações  de  uma  indústria  automobilística,  porém  não  na

 

condição de sócio ou empregado, como ocorre com Carlos em São Paulo S.A.

 

Fig. 13 -  Excerto 3, Quarto de Despejo, 11/07/1959, p. 158

Fig. 13 -  Excerto 3, Quarto de Despejo, 11/07/1959, p. 158

 

 

A intersecção de mundos também pode ser percebida nos momentos em que Carolina descreve suas visitas à “cidade”, como ela chama o centro de São Paulo, uma vez que a “favela” seria um ambiente à parte, sem os mesmos luxos e qualidades do espaço urbano central. À época, o eixo mais frequentado pelas classes abastadas estava localizado nos entornos da Praça da República e das Avenidas Ipiranga e São João.

 

Fig. 15 - Carolina Maria de Jesus com a filha no centro de São Paulo, em frente à Academia Paulista de Letras  (Foto publicada na Revista O Cruzeiro, 1959)

Fig. 15 - Carolina Maria de Jesus com a filha no centro de São Paulo, em frente à Academia Paulista de Letras

 

(Foto publicada na Revista O Cruzeiro, 1959)

 

Para ilustrar a visão de Carolina sobre a cidade, o professor deverá recorrer então a mais dois pequenos trechos de São Paulo S.A (trechos 3 e 4).

 

Para ilustrar a visão de Carolina sobre a cidade, o professor deverá recorrer então a mais dois pequenos trechos de São Paulo S.A (trechos 3 e 4).

 

No trecho 3 (situado entre 13min15s e 15min35s), Carlos e Luciana trocam olhares durante uma aula de inglês que ambos frequentam no centro novo de São Paulo. Na saída, sorridentes, os dois jovens passeiam pela Praça da República, repleta  de  pessoas  bem  vestidas,  como  diz  Carolina de Jesus, e ladeada por

edifícios grandiosos, como o Edifício Itália, que estava em construção.

 

Fig. 17 - Carlos e Luciana em cena romântica na Praça da República, no coração do centro novo da São Paulo industrial. Ao fundo, o Edifício Itália em construção.

A cena romântica não tem equivalente no diário de Carolina de Jesus, que retrata seus eventuais encontros amorosos com mais ceticismo e pragmatismo.

Fig. 18 - Em uma segunda cena na praça da República, aos 46min34s, um menino, que poderia ser um dos filhos de Carolina, é expulso do local por Carlos: “Vai embora senão te dou uma bolacha!”

 

no trecho 4 (situado entre 26min38s e 27min38s), Carlos vive um momento de desilusão após o suicídio de uma de suas ex-amantes. Ele divaga pela região da praça da Sé, centro histórico de São Paulo, à época já menos frequentada

por indivíduos de classes mais abastadas.

Fig. 19 - Carlos escuta pregação religiosa na praça da Sé

 

Em sua narração, Carlos desabafa contra a fugacidade dos acontecimentos e sentimentos em São Paulo, onde tudo passa depressa. Ao caminhar em frente a uma senhora com tuberculose, que pede ajuda, Carlos a ignora, por se considerar alguém “sem ter nada a dizer para ninguém, sem nada poder fazer a ninguém”.

Fig. 20 - Carlos olha para uma senhora com tuberculose na região da Sé e passa reto.

Fig. 21 - Carolina de Jesus na Favela do Canindé (Foto publicada na Revista O Cruzeiro, 1959)

Para encerrar a interconexão dos mundos de Carlos e Carolina, o professor pode fazer uso do excerto de uma entrevista concedida pela autora de Quarto de Despejo. Após um repórter da revista O Cruzeiro conhecê-la, Carolina de Jesus eventualmente teve seus diários publicados e deixou a favela do Canindé. Com o sucesso estrondoso de seu livro, ela foi morar com os três filhos em Santana, bairro de classe média da Zona Norte. Então Carolina pôde conhecer de perto os dilemas de pessoas como Carlos, inseridos num contexto de pressão social por sucesso, em meio a um mundo de aparências e de hipocrisia. Após algum tempo de fama, Carolina chega a uma conclusão interessante:


Fig. 22 - Quarto de Despejo, p. 173

 

No final da aula, caso o professor ou professora disponha de tempo, pode estimular junto aos alunos uma reflexão que faça uma ligação dos temas discutidos com o presente: Seria o mundo de hoje tão diferente do mundo de Carlos e Carolina nos anos 50 e 60?

Por um lado, o centro dinâmico da cidade se deslocou dos entornos da praça da República para as Avenidas Paulista e Faria Lima, ao passo que, em tempos de globalização, a indústria automobilística paulistana entrou em processo de decadência. Por outro, as favelas e os habitantes de menor condição social foram jogados para ainda mais longe das regiões centrais de São Paulo.

Nesse sentido, o destino da favela do Canindé, local onde vivia Carolina de Jesus, é revelador. No início dos anos 60, a pretexto de higienizar a cidade, políticos resolveram desapropriar o terreno ocupado pelos barracos às margens do rio Tietê.. A   historiadora  Sheila  Alice  Gomes  de  Meneses,  em  seu  livro  Negros  em Guaianases: cultura e memória, coleta o depoimento de Dona Izilda, que morava quando criança na favela do Canindé e cuja mãe aparece nas observações de Carolina de Jesus em Quarto de Despejo. Enquanto Dona Izilda explica que Guaianases foi um dos destinos oferecidos pelos políticos da época, Sheila tece as seguintes observações:

“[...] As pessoas teriam a possibilidade de, aparentemente, sair da clandestinidade da favela e passar a ter um lugar. Mesmo assim, mais do que acabar com o espaço físico da favela na desapropriação do espaço, acabava-se, igualmente, com o “problema” chamado favelado. Carolina Maria de Jesus traz para a sua narrativa alguns dos estereótipos constituídos socialmente sobre o favelado, o indivíduo que tem no seu modo de vida sua identidade, como “um infeliz”, “um objeto fora de uso”, “marginal”, “maltrapilho”, “projeto de gente humana”, “delinquente”, entre outros. Afinal, a favela era um lugar que não combinava com a modernidade da cidade paulistana.

Guaianases foi um dos destinos oferecidos antes do despejo na favela do Canindé. E apesar de representar a realização do sonho do lugar pra chamar de meu, naquele momento ele ainda era o não-lugar, a margem.”

 

Seria Guaianases uma das herdeiras contemporâneas da favela do Canindé?

 

Fica a questão para os alunos.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FILMOGRÁFICAS

 

 

GLEZER, Raquel. Visões de São Paulo. IN: BRESCIANI, Stella (org.). Imagens da cidade - séculos XIX e XX. São Paulo: Marco Zero, ANPUH/FAPESP, 1994, P.163-175.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. Ática, São Paulo, 1995.

SÃO PAULO, SOCIEDADE ANÔNIMA. Direção: Luiz Sérgio Person. São Paulo: Socine Produções Cinematográficas, 1965 [produção]. 1 filme (107 min), 35 mm, p&b.

SILVA, Sheila Alice Gomes da. Rastros, Memórias e Histórias: Um Guaianases

Negro. In: Negros em Guaianases: Cultura e Memória. São Paulo: EDUC, 2019, p.131-176.

Referencia
Graduandos