A Espanha de Cervantes: Dom Quixote como modelo de análise dos reinos europeus do início da Era Moderna.

 

 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Alberto Airton Amendola Gandolfo/Período: Noturno

N°USP - 9766108

Sequência Didática – Ensino de História: Teoria e Prática

A Espanha de Cervantes: Dom Quixote como modelo de análise dos reinos europeus do início da Era Moderna.

Docente: Antonia Terra de Calazans Fernandes

SÃO PAULO

2019

Título: A Espanha de Cervantes: Dom Quixote como modelo de análise dos reinos europeus do início da Era Moderna.

Tema: As mudanças sociais no começo da Idade Moderna, a crise moral/religiosa consequente do fim da época dos cavaleiros.

Público Alvo:

Devido à proximidade temporal e importância do assunto para a compreensão do tema, sugerimos que a sequência seja ministrada a alunos do Ensino Médio que já tenham sido familiarizados com a descoberta da América e o início do processo colonizador como meio de contextualização da época, outros conhecimentos desejáveis prévios a realização da sequencia são preceitos básicos sobre História Social e o aspecto fantasioso da Idade Média, seus mitos e lendas.

Objetivos:

Explorar as problemáticas sociais internas que surgem com o fim da Idade Média nas sociedades europeias, em especial a crise moral/religiosa decorrente da mudança de mentalidade após o fim da época dos cavaleiros, marcada pela honra e a bravura, em prol do pragmatismo, típico da Idade Moderna, presente na obra de Cervantes.

Atividades:

Inserida em um bloco pensado para a História Moderna, esta sequência utilizaria possivelmente o período de uma aula, 45-60 minutos, sendo possível, contudo, seu uso em outras temáticas, caso se mostre pertinente para o professor de História e até Sociologia. A importância literária da obra e sua influência sobre outros meios artísticos como o teatro, a música e o cinema, faz dessa sequência um material válido também para professores de Artes ou Literatura, que estejam em busca de conteúdo sobre o segundo livro mais lido da História.

As atividades aqui propostas, com o intuito de atender os objetivos previamente colocados, consistem em uma variedade de leituras de trechos da obra, antes e após uma contextualização ao período em que Cervantes escreve e alguns detalhes sobre suas sutis críticas, necessários para elucidar as questões sociais que poderiam facilmente passar despercebidas no romance. Visto isso, a capacidade dos alunos de criticar e responder aos trechos de diferentes maneiras (ou não) antes

e depois da interferência do professor também é um interessante aspecto da sequência, considerando novamente, que o caráter social da obra não é facilmente demonstrado em suas linhas.

Atividades sugeridas:

I. Introdução a “Dom Quixote de La Mancha” (5-10 minutos):

Apesar de ser um importante clássico literário, a obra de Cervantes não pode ser tomada por conhecida pelo professor, e sua introdução aos alunos faz-se importante. A presença de referências à obra na cultura pop nacional e internacional facilita esta atividade, assim como as diversas representações em pintura dos personagens da mesma, sendo interessante a utilização de alguma destas manifestações. Recomendamos a utilização da música “Dom Quixote”, da banda gaúcha de rock “Engenheiros do Hawaii” ou as obras do pintor de Brodowski Candido Portinari, publicadas junto a poemas de Carlos Drummond de Andrade em 1978 inspiradas na obra.

Letra da música “Dom Quixote”1:

1 Compositores: Humberto Gessinger / Paulinho Galvao. Letra de Dom Quixote © S.I.A.E. Direzione Generale, Mr Bongo (T), UNIVERSAL MUSICA INC, NOSSA MUSICA PRODUCOES E EDICOES MUSICAIS LTD.

Muito prazer, meu nome é otário Vindo de outros tempos mas sempre no horário Peixe fora d'água, borboletas no aquário Muito prazer, meu nome é otário Na ponta dos cascos e fora do páreo Puro sangue, puxando carroça

Um prazer cada vez mais raro Aerodinâmica num tanque de guerra Vaidades que a terra um dia há de comer "Ás" de Espadas fora do baralho Grandes negócios, pequeno empresário

Muito prazer me chamam de otário Por amor às causas perdidas

Tudo bem, até pode ser Que os dragões sejam moinhos de vento

Tudo bem, seja o que for Seja por amor às causas perdidas Por amor às causas perdidas

Tudo bem... até pode ser Que os dragões sejam moinhos de vento Muito prazer... ao seu dispor Se for por amor às causas perdidas Por amor às causas perdidas

Obras de Candido Portinari inspiradas em Dom Quixote:

imagem Dom quixote

Dom Quixote e Sancho Pança.

 

D quixote e sua montaria

Dom Quixote em sua montaria.

O intuito dessa atividade consiste em apresentar aos alunos de maneira perceptível a importância da obra e sua influência em importantes trabalhos da cultura nacional ou internacional, sendo um exercício que pode ser realizado através das mídias digitais também, com uma reprodução da música acima colocada, ou apresentação de trechos ou do trailer do filme “O Homem que matou Dom Quixote”, mais recente produção cinematográfica espanhola baseada na obra.

II. Primeira leitura de trechos da obra (10-20 minutos):

Propomos aqui que após a introdução da obra, o professor apresente trechos de Dom Quixote que demonstrem a crise moral vivida pela população do início da Idade Média, sem quaisquer informações prévias aos alunos, visando extrair a primeira impressão genuína destes diante do exposto em aula. A realização de uma leitura em conjunto com os alunos, abrindo espaço para a explicação de palavras ou expressões desconhecidas a eles é preferencial. Em seguida, o professor deve extrair dos alunos suas impressões sobre o trecho, sobre o que acham que se trata e qualquer outra informação que achar pertinente para a realização de seus

objetivos específicos, aqui sugerimos que alguns alunos sejam chamados a expor sua opinião em resposta a um chamado do professor, abrindo algum espaço para o debate de colegas que queiram se expressar em discordância, mas cuidando para não estender demais essa segunda parte da aula.

Trechos sugeridos para a realização desta atividade:

Trecho 1:

“É possível, senhor fidalgo, que tanto pudesse com Vossa Mercê a insípida e ociosa leitura dos livros de cavalaria, que lhe desse volta ao miolo, chegando a imaginar que vai encantado, com outras coisas desse jaez, tão longe de serem verdadeiras, como está longe a mentira da verdade? E é possível que haja entendimento humano que suponha que houve no mundo aquela infinidade de Amadises, e tantos famosíssimos cavaleiros, tanto imperador de Trapizonda, tanto Félix de Hircânia, tanto palafrém, tanta donzela vagabunda, tantas serpes, tantos endrí agos, tantos gigantes, tantas inauditas aventuras, tanto gênero de encantamentos, tantas batalhas, tantos recontros despropositados, tanta extravagância de trajos, tantas princesas enamoradas, tantos escudeiros condes, tantos anões graciosos, tanto bilhete, tanto requebro, tantas mulheres valentes, e finalmente tantas e tão disparatadas coisas como encerram os livros de cavalaria?”2

2 Dom Quixote de La Mancha - Primeira Parte (1605) Miguel de Cervantes Saavedra. Tradução: Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (Conde de Azevedo) e Antônio Feliciano de Castilho (Visconde de Castilho). Edição: eBooksBrasil. 2005. pp. 293.

3 Ibidem, pp. 33.

Trecho 2:

“Mais alto porém bradava D. Quixote, chamando-lhes aleivosos e traidores, e acrescentava que o senhor do castelo era um covarde, e mal nascido cavaleiro, por consentir que assim se tratassem cavaleiros andantes; e que a ter já recebido a ordem de cavalaria, ele o ensinara.” 3

Trecho 3:

“— Hás-de saber, amigo Sancho Pança — disse D. Quixote — que foi costume muito usado dos antigos cavaleiros andantes fazerem governadores aos seus escudeiros das ilhas ou reinos que ganhavam; e eu tenho assentado em que, por

minha parte, se não dê quebra a esta usança de agradecido, antes nela me desejo avantajar; porque os outros, algumas vezes, e as mais delas, estavam à espera de que os seus escudeiros chegassem a velhos, e já depois de fartos de servir, e de levar maus dias e piores noites, é que lhes davam algum título de Conde, ou pelo menos de Marquês de algum vale ou província de pouco mais ou menos; e tu, se viveres e mais eu, bem poderá ser que antes de seis dias andados eu ganhe um reino com outros seus dependentes, que venham mesmo ao pintar para eu te coroar a ti por seu Rei. E não te admires do que te digo, pois coisas e casos acontecem aos tais cavaleiros, por modos tão nunca vistos e pensados, que facilmente eu te poderia dar até mais do que te prometo.”4

4 Ibidem, pp. 51.

As expectativas sobre essa atividade seriam de que os alunos explorassem os aspectos narrativos e discursivos dos trechos, sem grandes percepções sobre os temas que são os alvos do professor nestes trechos. Especificamente, a questão da fantasia e o deslumbre com a época dos cavaleiros e a desilusão com a mesma no primeiro; a relação de incompatibilidade das épocas no segundo e as ofensas utilizadas como sinal da crise moral da época; enquanto o foco do terceiro trecho se encontra sobre o fim das conquistas de riqueza em aventuras, onde o professor demonstraria as falhas e a impossibilidade de cumprimento das promessas de Dom Quixote a Sancho Pança.

III. Iluminar o contexto histórico e a crítica social de Cervantes na obra (10-20 minutos):

Nesta terceira e mais importante atividade da sequência didática, projetamos que o professor realize um exercício de explicação aos alunos sobre o contexto histórico que envolve a obra Dom Quixote, assim como deixe claro a crítica social presente na obra, não recomendamos que essa atividade seja executada sobre os trechos usados na atividade II, e sim que o professor consiga realizar esse exercício sem o uso da obra em si, para não interferir na atividade IV planejada.

Visto que esta atividade em muito depende da classe em mãos e da percepção do professor sobre qual material seria mais eficiente para a realização dessa elucidação sobre os alunos, não propomos a utilização de um material

específico nesta sequência. Contudo, é vital que a execução do professor consiga atingir os objetivos propostos, detalhadamente recomendamos que o exercício realizado consiga de maneira eficiente fazer com que os alunos compreendam a importância do período (século XVI) como um divisor de águas entre a Idade Média e a Idade Moderna e que como tal, era recheado de contradições sociais entre a antiga sociedade feudal e a que se criava. Com relação a Dom Quixote em específico, o intuito do professor nesta atividade III é fazer com que a classe assimile que dentro das linhas do livro há uma crítica social implícita a essas contradições do período, deixando sua localização por parte dos alunos no texto realizável.

A importância desta atividade III é de necessário destaque, visto que sua boa execução é premissa para o sucesso das atividades IV e V planejadas, com isso em mente nossa recomendação é pela execução desta como uma parte expositiva da aula.

IV. Releitura dos trechos apresentados na atividade II (10-20 minutos):

Ao final da terceira atividade, propomos que o professor inicie uma entrega para os alunos de materiais com os trechos anteriormente lidos em conjunto, esses materiais devem conter um ou todos estes trechos, entretanto, recomendamos que o professor peça aos alunos que façam uma análise crítica, levando em conta a recente explicação, de um ou dois desses trechos, para que essa atividade não se torne extensa ou exaustiva para a classe.

De maneira ideal, os materiais para a atividade devem conter o (ou os) trecho(s), e um espaço reservado para a produção dessa análise crítica por parte dos alunos, cabendo ao professor, caso considere necessário, indagar alguns alunos a expor suas ideias para o restante da classe, a fim de perceber a eficácia da atividade III sobre a sala, caso a resposta seja negativa, cabe ao educador buscar maneiras de instigar os alunos a caminhar para o resultado desejado, com o cuidado de não “entregar de bandeja” o esperado deles, para não limitar sua liberdade criativa.

A limitação temporal para a realização desta atividade se faz necessária para a realização da próxima, portanto, sugerimos que o professor controle rigidamente a

entrega dos materiais produzidos, para prosseguir com a aula sem grandes delongas, sabendo que as atividades de produção escrita são as que mais facilmente se estendem na sala de aula.

O objetivo desta atividade é que os alunos consigam identificar as críticas de Cervantes presentes nos trechos utilizados, como previamente dito: a questão da fantasia e o deslumbre com a época dos cavaleiros e a desilusão com a mesma no primeiro; a relação de incompatibilidade das épocas no segundo e as ofensas utilizadas como sinal da crise moral da época; enquanto o foco do terceiro trecho se encontra sobre o fim das conquistas de riqueza em aventuras, onde o professor demonstraria as falhas e a impossibilidade de cumprimento das promessas de Dom Quixote a Sancho Pança.

A produção escrita se tornando um interessante aspecto da sequência, visto que possibilita ao professor visualizar as diferentes interpretações, que alcançam ou não a crítica prevista, proporciona um parâmetro sobre a criatividade dos alunos e o alcance do pensamento crítico destes. De maneira ideal as atividades seriam corrigidas e um comentário de resposta elaborado pelo professor, como símbolo de conclusão da aula, a ser entregue na próxima aula.

V. Expansão da temática e conclusão de aula (7-15 minutos)

Em nossa percepção se faz necessário ao final da aula, que o professor expanda a temática aos alunos, mesmo que a mesma possa parecer nítida ao historiador, é compreensível pensar que os alunos possam sair da aula com a ideia de que o fenômeno da crise moral/religiosa e as contradições em períodos de transição social seriam restritos ao contexto espanhol. Desta maneira, propomos que seja expandida a temática, com uma exposição sobre o fenômeno como uma realidade presente em todo o ocidente europeu na época, explicitar o caráter irreparável desta mudança de eras também se faz interessante, com a colocação da colonização e o aumento do comércio internacional e da globalização como um caminho sem volta para a sociedade.

Após essa expansão e inserção da temática em um concerto global, propomos que o docente repasse sobre pensamentos chave, referenciando momentos variados da aula, com o intuito de terminar a aula de maneira coesa e bem articulada, em uma conclusão que traga aos alunos uma sensação de

naturalidade e realização de algo produtivo, cabe aqui, ao professor convidar alunos a expor as mudanças entre o pensamento inicial ao ler os trechos da obra de Cervantes e a análise crítica que realizaram em um segundo momento.

Observações:

Dado a variedade de edições de “Dom Quixote de La Mancha”, suas diferentes linguagens e público-alvo, consideramos possível a execução de parte ou até mesmo da totalidade desta sequência didática com alunos do final do Ensino Fundamental.

Apesar da busca nesta sequência por uma evolução da percepção dos alunos sobre os trechos apresentados em aula, faz-se possível a utilização do conteúdo desta para aulas exclusivamente expositivas, dada a preferência do professor responsável.

Referencia
Graduandos