História de São Paulo: Butantã

Disciplina: Uma História para a Cidade de São Paulo: Um Desafio Pedagógico Professora: Dra. Antonia Terra Calazans Fernandes Aluna: Jeane Moreno Quinteiro Ano: 2010

 

 

Introdução

 

     “A gente ia ao rio pra passear de barco, pescar, nadar, pular da ponte... A água era muito limpa, dava muito peixe: lambari, piaba...” (Orlando Manso)

 

     A pesquisa de documentos para este trabalho teve como ponto de partida a urbanização da região do Butantã, a intenção era entender o processo que levou a ocupação dos espaços e a ausência de lugares sem uso ou função. No entanto, os testemunhos e fotografias retornam sempre a um mesmo tema : o rio Pinheiros.

     Confesso que não pensei a princípio no rio. O que salta aos olhos hoje é o tráfego, as ruas, as casas coladas umas as outras, os prédios altos, aquilo que vemos como parte de ser cidade, de estar em um local urbano. O rio, é um detalhe mal cheiroso, um obstáculo para o transito de veículos, uma problema entre duas marginais.

     Nem sempre foi assim.

 

 

Proposta

 

     Com base em um testemunho sobre a vida no Butantã no início do século XX, reunir dados sobre a história local e sobre o cotidiano na região. Localizar os locais e atividades descritas neste testemunho no mapa atual de São Paulo e também em planta antiga da cidade, possibilitando a percepção visual das transformações.

     A história que se obterá dos documentos aqui selecionados será construída em sala de aula, durante a atividade, através das próprias impressões dos alunos. A comparação entre a vida dos alunos e a vida descrita por Orlando Manso, permite compreender que apesar de o local ser o mesmo, os modos de vida foram drasticamente alterados durante o século XX. A urbanização altera a paisagem, mas altera, também, a relação da população com o ambiente ao seu redor.

 

Documentos

  • Testemunho – Orlando Manso

     “A ponte do rio Pinheiros era em frente à rua Butantã. Naquele tempo, a avenida Rebouças se chamava rua Itapiruçu. A gente ia ao rio pra passear de barco, pescar, nadar, pular da ponte... A água era muito limpa, dava muito peixe: lambari, piaba...

     Estudei no Grupo Alfredo Bresser, na rua Fernão Dias, só até o segundo ano. A molecada e eu, a gente às vezes cabulava a escola só pra passar o dia no rio. Depois vinham os velhos com chicote pra castigar a gente...

     Passavam aqueles barcos do Clube Germânia, que a gente chamava de 'Clube dos Alemão'. Eles vinham remando, homens e mulheres, naqueles barcos compridos, todos com calções e maiôs de banho. Tinha uma parte dividida do rio, que era o porto de atracamento dos barcos deles, e uma outra parte de rio fechado, onde crianças nadavam com os guardas tomando conta. E embaixo da ponte do rio tinha o fiscal, que prendia os barcos que não tivessem licença da prefeitura.

     Nunca entrei no Clube Germânia. Ali eram todos do estrangeiro, loiros, pele da cor do leite. Quando passavam de barco, às vezes a gente conversava com eles: 'Hoje a correnteza tá brava, amigo. Hoje tá dando peixe. Hoje não tem peixe, o rio tá sujo.' Naquele tempo, não tinha nada de tratar um melhor que outro não.

     Todo mundo que morava na beira do rio tinha um barco. Mas eu não tinha não. A gente andava no barco do pai de um amigo meu. A gente subia o rio, passava pela avenida Cidade Jardim, e chegava lá perto de Santo Amaro. Depois dali já era mais difícil, porque tinha muita pedra e muita curva, e umas cachoeirinhas... O rio às vezes ficava quase seco, e se formavam aquelas passagens estreitas, a água correndo com mito força. Então, pra ir mais adiante, a gente precisava descer do barco e arrastá-lo por uma corda, com todos empurrando, até passar aquelas corredeiras bravas. Mas pra voltar era bom, e a gente vinha em cima do barco. A gente chegou a ir de barco até onde o Pinheiros cruza com o Tietê. Onde hoje é o mercado Eldorado, o rio fazia uma curva. E ia paralelo à rua Iguatemi, que hoje é a avenida brigadeiro Faria Lima.

     Cada barco tinha o seu porto de atracar na beira do rio. Eles ficavam amarrados com corda ou fixados com paus espetados e argolas de ferro. Quando chovia muito, podia o barco se desgarrar e sair rodando lá pra baixo. Aí precisava pegar outro barco pra ir buscar o nosso. As mulheres dos barqueiros é que ajudavam a carregar os caminhões e descarregar os barcos.

     Do lado do rio era barranco. O rio era fundo, uns três ou quatro metros até chegar na água. De cima do barranco é que a gente pescava. A gente ia até Jaguaré... Não sei os nomes daquela época, porque era tudo mato. Onde hoje é a ponte da Cidade Universitária a gente também pulava e nadava. A água era boa. Não lembro a profundidade, mas encobria a gente. E, nas cheias, chegava a quatro, cinco metros.

     O rio tinha muitas subidas e descidas, de um, dois metros... Quando chovia e o rio enchia, aí era bom de andar no rio, porque nada atravancava o caminho. Muitas vezes a gente passava por debaixo da ponte do Pinheiros a pé, dentro d' água, porque o rio estava seco, e se formavam aqueles correguinhos estreitos de dois, três metros. Quando chovia muito, onde hoje é o Jóquei Clube, que era um mato desgramado, ficava um lago tremendo. Do lado de cá do Butantã, os meus cunhados que moravam na antiga rua da Aldeia, bem vizinha ao rio, ficaram muitas vezes com água no pescoço.

     O rio era ora estreito, ora largo. A paisagem nas laterais era barranco e mato, só mato. Do lado de lá do rio, tinha muita casa. Cada um tinha sua chacrinha, a sua hortinha. Mas, do lado de cá, enchia tudo. Então começaram a surgir os leiteiros. No alto de uma subida da avenida Corifeu de Azevedo Marques, tinha uma grande venda, onde todos os leiteiros se reuniam. Ali só morava leiteiro. Ninguém plantava nada ali, mas tinha pasto pras vacas. Perto do Butantã, fizeram até umas vaquinhas de cimento armado, porque ali era o bairro dos leiteiros.

     As meninas não iam ao rio não, só os moleques. As meninas ficavam em casa e ajudavam a catar lenha. Naquele tempo não tinha gás, era só carvão e lenha. Do lado da Vila Madalena, era só mato. Onde hoje é o Estádio do Pacaembu, eu mesmo catei muita lenha, e vinha trazendo de feixe na cabeça até Pinheiros.

     Na rua Cônego Eugênio Leite morava um velho chamado Joaquim Carvoeiro, que tinha dois filhos e três filhas. Um dos filhos dele morreu afogado no rio Pinheiros. Os bombeiros demoraram quatro, cinco dias pra achar o corpo. Naquele tempo era assim, hoje mudou tudo.

     Além dos bondes de transporte, tinha os de cargueiro, que vinham ao rio buscar pedra e areia pra levar pra cidade. Os barqueiros faziam aqueles montes de pedras e areia; o bonde encostava ali e o guindaste carregava tudo. Ninguém carregava o bonde na pá. Eu carreguei muito caminhão na pá. Só os caminhões que pegava areia na beira do rio é que eram carregados na pá. Eu carreguei muito caminhão assim. Da ponte do rio pra cima, era tudo porto de areia. Tinha as mulheres dos portugueses, que davam um duro danado ajudando a gente. Uma delas sempre me falava: 'Vamos lá, garoto, vamos ver se tu és homem...'

     Trabalhei doze anos puxando carvão, lenha, madeira, daqui pras padarias de Pinheiros, da Consolação, e areia, pedra e tijolo pro cemitério, cemitério São Paulo, cemitério do Araçá. Na beira do rio a gente carregava o caminhãozinho, que não era grande como os de hoje, e entregava dentro do cemitério.” Orlando Manso, filho de imigrantes italianos, nasceu em 1919. Sempre viveu nos bairros de Pinheiros e Butantã. Trabalhava como barqueiro, carreteiro e mecânico, e foi jogador de futebol.¹

 

  • Planta da cidade de São Paulo

 

     A prefeitura da cidade de São Paulo disponibiliza no site “Histórico demográfico do município de São Paulo” plantas antigas da cidade, fotografias e dados censitários colhidos desde 1872.

     Para este trabalho utilizaremos a planta do ano de 1924 e dela recortaremos as áreas necessárias para acompanhar a experiência descrita no testemunho. A planta completa está disponível no endereço: http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/img/mapas/1924.jpg

 

  • Mapa da região do Butantã.

 

Mapa gerado em 2010 buscando o mesmo recorte selecionado para a planta de 1924, site: http://maps.google.com.br/

 

Sugestões de abordagens

 

Localizar na planta e no mapa alguns pontos citados por Orlando.

  1. "A ponte do rio Pinheiros era em frente à rua Butantã.”
  2. “Estudei no Grupo Alfredo Bresser, na rua Fernão Dias, só até o segundo ano.”
  3. “Onde hoje é o mercado Eldorado, o rio fazia uma curva.”
  4. “Onde hoje é a ponte da Cidade Universitária a gente também pulava e nadava. A água era boa.”
  5. “Quando chovia muito, onde hoje é o Jóquei Clube, que era uma mato desgramado, ficava um lago tremendo.”

 

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Mapa da região do Butantã próximo ao rio Pinheiros, gerada através do site http://maps.google.com.br. Retrata o desenho do bairro em 2010.

 

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Planta da região do Butantã em 1924, recorte obtido de planta da cidade disponível no site: http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/img/mapas/1924.jpg

 

Discutir temas fazendo uso da planta.

 

     O uso das duas plantas em sala de aula possibilita a percepção de mudanças e permanências, além de localizar espacialmente os eventos citados no testemunho de Orlando.

     O professor deve incentivar os alunos a fazer esse tipo de identificação: o que mudou, o que permanece?

 

     Algumas sugestões de análise.

 

     Comparando a planta de 1924 e o mapa de 2010 podemos perceber que algumas estruturas urbanas permanecem, mesmo havendo alterações. Isso ocorre com o Instituto Butantã, localizado, hoje, entre a Av. Vital Brasil e a Av. Corifeu de Azevedo Marques. Por existir já em 1924 e manterse em funcionamento hoje, é um ótimo ponto de referência para localização dos espaços na planta antiga.

     O traçado das avenidas acima citadas permanecem os mesmos, ocorrendo apenas alterações dos nomes, em 1924 eram respectivamente Estrada para o Butantã e Estrada para Osasco. Acredito que a diferença da nomenclatura dessas ruas tragam em si uma pista para construção da história local, a designação “estrada para” indica movimentação, lugar de passagem, caminho entre dois pontos. Podemos entender que para os organizadores da planta o Butantã é entendido como uma região de passagem, antes de ser destino final; seu papel dentro da organização do município não é definido segundo funções sociais ou econômicas. Apensar desta constatação poder ser realizada, não podemos esquecer que a região do Butantã era habitada no período e, portanto, não era somente um local de transito de pessoas, isso ficará claro durante a leitura do testemunho selecionado.

     Mesmo que o traçado permaneça é importante ressaltar as transformações ocorridas, como asfaltamento das avenidas e profundas mudanças na paisagem. O caminho é um resquício do passado, mas não se pode daí concluir que tudo permanece. Como exemplo, cito o caso da Rua Teodoro Sampaio, que apesar de não fazer parte do bairro localiza-se próximo a ele. Seu traçado também permanece, mas a paisagem foi alterada no século XX.

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Obras de pavimentação da Rua Teodoro Sampaio. 1921. Autoria de Domício Pacheco, acervo AHMWL. Obtida no site: http://www.arquiamigos.org.br/info/info22/i-manu.htm

 

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Vista da Rua Teodoro Sampaio, 2008. Autoria de Raul G. Hummel. Obtida no site: www.panoramio.com/photo/11458160

    

     O cuidado no uso de plantas históricas deve levar em conta as transformações ocorridas na paisagem, já que a permanência das ruas pode levar a falsa sensação de não haver alterações significativas. No exemplo acima, notamos que a energia elétrica e a direção da via coincidem, no entanto a quantidade, a forma e o tipo de construção é diferente, bem como os meios utilizados para locomoção. A rua ganhou asfaltamento e outros serviços públicos e no seu entorno foram feitas muitas outras vias e quarteirões.

      Aliando fotografias, gravuras e desenhos com mapas é possível formar mentalmente uma imagem do passado. Os alunos podem “imaginar” cenas descritas nos testemunhos e localizá-las espacialmente.

 

     Paisagem

 

     O Rio Pinheiros teve seu traçado alterado, retificado. Isso significa que algumas áreas que hoje possuem construções eram, em 1924, leito de rio e vice – versa. O mercado Eldorado (Shopping Eldorado) localiza-se onde o rio fazia uma curva, conforme testemunho. Ainda, acompanhando o testemunho, o rio possuía cachoeirinhas, áreas com grande profundidade e áreas mais rasas.

     O entorno é descrito como todo mato, com barrancos nas laterais do rio. A planta de 1924 descreve a área próxima à Av. Vital Brasil como “varjão alagado”, coincidindo com as informações dadas no testemunho, grandes áreas sem construções tomadas por mato e alagáveis.

 

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Enchente em 1929, na antiga Ponte do Pinheiros, próximo à atual Rua Butantã. Fonte: site Histórico Demográfico do Município de São Paulo - http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/1920.php

 

     Trabalho

 

     Orlando descreve alguns tipos de trabalhos feitos pelos moradores da região. Carregar e descarregar barcos e caminhões, com materiais retirados do rio ou das áreas próximas: pedras, areia, carvão, lenha, madeira. Retiradas do Butantã e levadas para o centro. Haviam barqueiros que transportavam pessoas, materiais, produtos. Produtores de leite e portanto, também criadores de gado, pequenos comerciantes e pescadores.

 

     Meios de transporte

 

     Reunindo as informações do testemunho e das fotografias apresentadas, percebemos que conviviam meios de transporte utilizados hoje com aqueles que são mais dificilmente encontrados em áreas urbanas. Convivem barcos, canoas, carroças, cavalos e pequenos caminhões. Notamos, também, pela planta de 1924 que até esta data não há linha de trem que atenda a área, a linha de trem será construída posteriormente à retificação do Rio Pinheiros.

 

     Lazer

     Com relação a este tema, creio que seria interessante comparar as atividades de lazer dos alunos com as citadas por Orlando, e novamente, voltamos às relações com o Pinheiros. Nadar no rio, pular da ponte e pescar, são diversões inimagináveis para os dias de hoje, causam estranhamento e nos dão a dimensão de como o modo de vida foi alterado após o aumento da população, as obra públicas de intervenção no rio e transportes e a intensificação da urbanização na região.

 

     Conclusão

     Vemos o Butantã da primeira metade do século XX como uma mistura de área urbana e rural. Separado do centro da cidade pelo rio, é ao redor dele que a vida se desenvolve. Percebemos que as exigências da área urbana, centro da cidade, interferem nas relações de trabalho do Butantã, levando a população a produzir para o consumo do centro (no caso do leite) e extrair da natureza matérias-primas (areia e lenha) para o desenvolvimento da cidade.

     Ao passo que a cidade cresce, partindo de seu centro, atingirá a região do Butantã no decorrer do século XX, alterando a paisagem, os modos de vida, a economia; fazendo com que o testemunho de Orlando seja prova de transformações profundas na forma de viver nesta região da cidade.

 

Nota

1. COELHO, Fernando (org.) O Rio Pinheiros. São Paulo: SMA, 2002. p. 55 – 57

 

Leitura para o professor

CAMPOS, Eudes. A vila de São Paulo do Campo e seus caminhos. In: Revista do Arquivo Municipal / Departamento do Patrimônio Histórico V. 204 – São Paulo: DHP, 2006 COELHO, Fernando (org.) O Rio Pinheiros. São Paulo: SMA, 2002

 

Sites interessantes

Informativo do Arquivo Histórico Municipal. São Paulo, setembro/outubro de 2008: http://www.arquiamigos.org.br/info/info20/i-intro.htm

 

Histórico Demográfico do Município de São Paulo : http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/introducao.php Companhia City : http://www.ciacity.com.br/

Referencia
Graduandos
Anexo Tamanho
historia_de_sao_paulo_butanta.pdf 439.94 KB